Santos populares atraem devotos em Belém. Veja!

Publicado em 29/10/2023

Mais do que as memórias de um ente querido que se foi, as inscrições grafadas em algumas das lápides encontradas nos tradicionais Cemitérios da Soledade e Santa Izabel, em Belém, guardam também a referência de uma alma que ficou conhecida pela concessão de graças.

Chamados “santos populares”, tais personalidades são homenageadas cotidianamente por pessoas em busca de uma resposta para um problema que enfrentam, sejam eles relacionados a problemas de saúde, a relações conjugais ou mesmo a questões judiciais.

Quando se adentra o centenário Parque Cemitério Soledade, no bairro de Batista Campos, não é difícil identificar as sepulturas dos “santos populares”. Não por acaso, próximo às lápides que informam quem foi sepultado naquele local, é possível encontrar velas, flores, placas de mármores com os dizeres ‘gratidão por uma graça alcançada’ e até mesmo brinquedos e comida. São objetos depositados por pessoas que desejam manifestar gratidão à alma para a qual fizeram algum pedido que foi atendido.

 
  

Entre os túmulos mais visitados do cemitério inaugurado em 1850 e que, recentemente passou por obras de restauração e conservação, está o do santo popular que ficou conhecido como Menino Zezinho.

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Segundo registra a cartilha do Cemitério da Soledade, documento elaborado pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC) da Secretaria de Estado de Cultura (Secult), Zezinho está associado aos erês das religiões de matriz africana e seus devotos conferem a ele os pedidos relacionados às crianças e aos jovens.

Apesar da referência atribuída pela forte devoção popular, a partir de sua lápide a única informação que se tem é a de que ali foi enterrada uma criança chamada José, que faleceu em 13 de fevereiro de 1881, ainda no século XIX. Passados mais de 140 anos, hoje a sepultura ainda recebe homenagens.

Além de uma placa de mármore com os dizeres “agradeço graças alcançadas”, na manhã da última sexta-feira (27), também podia-se ver no local as oferendas de brinquedos, bombons, uma roupa e até mesmo comida.

Em outro trecho do cemitério, outra criança também recebe homenagens, o santo popular conhecido como Menino Cícero. Ainda em processo restaurativo, o túmulo também recebe brinquedos em homenagem à alma da criança enterrada no local, como um caminhão de plástico e bolas de gude. Na lápide, a grande quantidade de terços e fitas amarradas não permite ler as informações sobre o falecido.

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Presentes em lápides de diferentes portes, as homenagens às almas se repetem em vários pontos do cemitério. No corredor central, outra sepultura chama a atenção pela grande visitação popular, o túmulo de uma mulher identificada apenas como Preta Domingas, morta em 25 de março de 1871. A mulher, escravizada, foi homenageada com o aterramento em área nobre do cemitério, ao lado da Capela em alusão a Nossa Senhora da Soledade.

ANASTÁCIA

Outra mulher escravizada que foi sepultada no local e que, hoje, é tida como santa popular é identificada como Escrava Anastácia ou Romana. No livro ‘Procissão dos Séculos: vultos e episódios da história do Pará’, datado de 1952, o historiador Ernesto Cruz relata que essa mulher escravizada identificada como Romana foi, inclusive, o primeiro sepultamento registrado no cemitério.

 
  

A depender da relação feita com a pessoa sepultada e com as experiências vividas por ela em vida, as atribuições se modificam. Na sepultura de uma mulher identificada como Marianna Izabel Leite da Silva, sepultada em 1880 e cuja lápide traz a expressão “amor conjugal”, a devoção popular está muito relacionada a questões amorosas.

Já a sepultura do advogado Joaquim Almeida, tido como um homem que, em vida, teria ajudado os mais necessitados, as placas de mármore depositadas agradecem por graças vinculadas a questões de ordem jurídica ou financeira.

 
  

Visitação

Não apenas pela beleza artística de muitas das sepulturas encontradas, mas também pela tradição viva do culto às almas e aos santos populares, o estudante de história Isaac Cardoso, de 22 anos, considera a visita ao Cemitério da Soledade uma possibilidade de reencontro com o passado.

“Aqui a gente consegue ter um contato com a história a partir da mentalidade da época em que essas crenças iniciaram e que se mantêm até hoje. A gente vê em vários túmulos placas indicando graças alcançadas, então, é muito interessante”, avalia. “Toda a história do Soledade é muito interessante e vir até aqui acaba sendo uma forma de ter contato com esse passado”.

Ainda no livro ‘Procissão dos Séculos: vultos e episódios da história do Pará’, o historiador Ernesto Cruz registra que, durante os 30 anos em que esteve em funcionamento, 31.872 pessoas foram sepultadas no Soledade, que logo teve a sua capacidade esgotada, interrompendo as atividades em 1880. Apesar disso, as visitas ao local não cessaram, sobretudo diante da tradição do culto às almas, realizado até hoje sempre às segundas-feiras, quando as pessoas vão ao local visitar as sepulturas de pessoas tidas como operadoras de milagres para fazer orações e depositar velas, objetos e oferendas.

SANTA IZABEL
Severa Romana

Ainda apto a receber sepultamentos, o Cemitério de Santa Izabel também é acometido pela tradição do culto às almas, nas segundas-feiras. Entre as sepulturas de santos populares mais visitadas no local, está a da Severa Romana, uma mulher de vida simples que viveu e foi morta na Belém do início do século XX. A enorme comoção popular gerada por sua morte, acabou resultando no culto à sua alma, a quem populares atribuem a concessão de graças.

O processo do julgamento que condenou o assassinato de Severa Romana é salvaguardado pelo Centro de Memória da Amazônia (CMA), instituição ligada à Universidade Federal do Pará (UFPA). Nas páginas escritas à mão, o documento detalha o violento crime cometido contra uma mulher no dia 02 de julho de 1900 na própria casa em que ela morava, na rua João Balbi, em uma época em que o bairro do Umarizal era considerado uma região quase isolada.

Severa era uma pessoa comum, casada e que trabalhava como lavadeira, além de ser a responsável por servir as refeições aos moradores da residência em que vivia com o marido, Pedro Cavalcante de Oliveira.

Em uma relação típica da época, quando era comum que, por motivos financeiros, pessoas se juntassem em alguns espaços mais baratos para sobreviver, o casal dividia o local de morada com outras pessoas, dentre elas o cabo Antônio Ferreira dos Santos, que viria a ser o assassino de Severa Romana.

Segundo detalha o processo, Antônio Ferreira dos Santos estava almoçando na casa quando cometeu uma tentativa de abuso sexual contra Severa e, diante da resistência da mulher que passava pelos últimos períodos de uma gestação, o cabo acabou matando-a com golpes de navalha.

A comoção popular pela forma como a mulher foi morta foi tão grande, que os jornais da época relatam a realização de uma coleta para a construção da sepultura de Severa, no Cemitério de Santa Izabel. A mesma sepultura que, hoje, recebe flores coloridas, copos de água mineral, velas e, ainda, as pequenas placas de granito que agradecem graças alcançadas.

Camilo Salgado

Em outro ponto do cemitério, logo na entrada do Santa Izabel, outra sepultura recebe objetos e oferendas, a do médico Camilo Salgado, que faleceu em Belém em 1938. Relatos de familiares de Camilo Salgado contam que ele era filho de um professor de francês e mudou-se de Belém, ainda jovem, para estudar medicina na Bahia, já que àquela época não existia a possibilidade de cursar a faculdade na capital paraense.

 
  

A graduação foi concluída, porém, no Rio de Janeiro. O aprimoramento da formação se deu na França, onde o médico adquiriu muito conhecimento e experiência na área cirúrgica antes de retornar a Belém.

Já na capital paraense, Camilo Salgado começou a operar em diversos hospitais espalhados pela cidade e ficou conhecido por não deixar de atender ao máximo de pacientes que conseguisse, mesmo que muitos não pudessem pagar pelo serviço.

Depois de anos dedicados à profissão, o médico acabou morrendo, em casa, vítima de um infarte. Porém, nem a morte foi suficiente para encerrar a peregrinação de pessoas que vão até o médico em busca da cura de alguma doença. Desde 1938 pessoas param diante do túmulo do médico para pedir por sua saúde ou de entes queridos.


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