Napoleão, de Ridley Scott: quando nem todo poder basta
Publicado em 02/02/2024
“França – exército – Josephine”. Essas teriam sido as últimas palavras de Napoleão antes de morrer. Historicamente, existem controvérsias se foram realmente essas. Mas, para o filme de Ridley Scott, são esses motivos que ditam o enredo do seu “Napoleão” (2023). O líder francês que a tudo ambicionava, constatará que nem sempre todo poder basta.
Antes de sua fama ecoar aos quatros ventos, Napoleão experimentará os caminhos pelos quais a política e o poder podem levar. Ele vê, taciturno, a rainha Maria Antonieta, sobe os berros de escárnio do povo, ser guilhotinada, e vê as ambições e as brigas internas dos chefes da Revolução Francesa.
Em um das poucas cenas representativas que remetem ao contexto histórico da Revolução, o líder jacobino Robespierre está discursando em um salão. A plateia se divide sobre sua fala. Do alto de um dos corredores, um líder adversário girondino grita em sua direção: “você não é um defensor da liberdade! Você se considera o juiz, o júri e o carrasco, não é verdade?”.
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Esse período revolucionário seria lembrado por Norberto Bobbio (em “A teoria das formas de governo”) na sua exemplificação do poder despótico a partir de Montesquieu. O despotismo é o poder que tem no terror sua característica fundamental, seu símbolo.
Para Saint-Jus (o arcanjo do terror) e Robespierre, o terror é imprescindível para a chegada da república democrática, o reino da virtude. Como se sabe, como instiladores do medo, eles não se traíram. Mas o poder sem freios pode também a todos atingir. Logo depois, Robespierre e seu arcanjo serão vítimas de sua própria lâmina.
Napoleão (Joaquin Phoenix) sendo um produto da revolução, também, em um primeiro momento, não se trai. Após sua arrasadora vitória de Toulon, a batalha que lhe traria fama no território francês e que lhe proporcionou maior poder político, ele, no filme, com carta branca dos novos líderes revolucionários, explode, literalmente, a revolta monarquista de 1785.
Mas aí entra, definitivamente, Josephine (Vanessa Kirby). E, para a história de Ridley Scott, ela terá um papel decisivo na trajetória napoleônica. Ele não apenas se casa com ela, como, obsessivamente, por estar na campanha do Egito, implora por notícias suas.
Josephine, nesse momento, está traindo seu marido com outro homem. Napoleão ainda não sabe, mas uma cena da campanha do Egito serve como uma metáfora dessa relação nem sempre domesticável entre a política, o poder e a vida.
O comandante francês está diante dos tesouros arqueológicos egípcios. Encostada em uma parede, na vertical, está uma múmia dentro de um sarcófago.
Napoleão a olha, sobe em um banquinho, coloca seu famoso chapéu sobre a múmia e aproxima seu rosto daquela face sem vida. Em seguida, ele toca o rosto da múmia suavemente, deslocando-o para o lado, vendo o fim daquele poder já extinto. “Memento mori” (lembre-se da morte).
Ele parece estar se perguntando, o que são os grandes homens? Aqueles que se acham deuses acabam assim? E nós com ele nos perguntamos se nem todas suas conquistas lhe teriam evitado a traição? Nem sempre todo o poder é suficiente.
Em seu retorno para a casa, ele, furioso, ameaça deixar Josephine. Ela reverte a situação dizendo para ele que, sem ela, ele não é nada. A partir daí, o filme começa seu desfile psicologizante, mostrando, grosseiramente, um edipiano e lascivo Napoleão.
Poucos personagens na história mereceram tantos textos. Poderíamos pensar que essa representação de um Napoleão incontrolável e contraditório faz parte de sua vida, faz parte do humano.
Mas para a história, ou pelo menos, para a história mais comum, ainda reverbera, por exemplo, a sua coroação e muitas de sua batalhas. Ele é um mito. E mitos são lidos de várias formas.
O filme de Ridley Scott dá essa versão na qual o homem e o mito procuram ser juntados. A famosa cena da coroação reproduz o famosíssimo quadro de Jacques-Louis David (1807).
Diante do espanto de todos (no quadro isso é levemente perceptível, mas no filme gera um “ooohhh”!) o imperador coroa a si mesmo, marcando simbolicamente a separação do Estado e da Igreja, união fundamental das antigas monarquias.
Além das cenas impressionantes da Batalha de Waterloo, vemos a sequência da celebrada vitória em Austerlitz que, com o uso da tecnologia da computação, é capaz de representar esse momento, talvez, como nunca havíamos imaginado antes.
O sadismo do vitorioso general diante do derrotado Francisco II, ao agradecer ao imperador austro-húngaro por ter feito ele cometer um erro ao ter vindo até ele, o que lhe impediu de derrotar, já naquele momento, também os russos, é muito mais impactante que todas as cenas libidinosamente sádicas do filme.
A pretensão de mostrar Napoleão como homem e mito ganha ainda duas sequências representativas. A primeira é a dissolução do casamento com Josephine (ela não poderia ter mais filhos e o imperador queria um herdeiro). No ato, ele chora e, em seguida, estapeia Josephine para que ela assine o documento de divórcio em prol da França.
O poder supera o amor, mas, ao mesmo tempo, talvez esse poder possa ser um complemento da perda, da sua falta, dos seus medos. Homem e mito. As lágrimas caem, mas sem compaixão.
A segunda sequência é sua famosa entrada em Moscou. A câmera movimenta-se seguindo seu cavalo de perto, ele gira em 360 graus com seu animal e, em close, vemos seu rosto estupefato.
A cidade está deserta. Napoleão grita: “onde estão vocês!?”. Aquele que é tido por muitos como o maior estrategista de todos os tempos, não antecipara o movimento adversário.
Há muitas produções cinematográficas e séries sobre o Líder francês. Mas o que o diretor Abel Gance fez em 1927 é algo totalmente extraordinário até hoje. O “Napoleão”, de Gance, é um daqueles filmes do cinema mudo que ficaram lendários por vários motivos.
Quando foi exibido teria sete horas de duração, suas técnicas empregadas são revolucionárias – não há outra palavra – para o período, com travellings (movimento de câmera) com a câmera na mão, cortes em contraponto (uma cena contrapondo ou complementando o sentido da outra), fusões de imagens, efeitos especiais e a famosa sequência final na qual três quadros na tela mostram, ao mesmo tempo, a mesma cena ou cenas diferentes.
Não apenas por todas essas inovações ele é cultuado. Ao contrário do filme de Scott, o filme de Gance (que interpreta Saint-Just, o arcanjo do terror) pretendeu mostrar o Napoleão desde sua infância, passando ainda por uma longa representação dos acontecimentos da Revolução Francesa, até terminar no início da campanha da Itália.
O “Napoleão”, de Ridley Scott, pode não ter tido essa pretensão. O fato de ser anunciado de que se pretende relançá-lo com mais uma hora e meia de duração para TV, talvez indique o quanto ele poderia ser mais coeso, parecendo menos uma sequência de episódios esparsos.
Talvez por isso ele tenha buscado se deter – com resultados questionáveis – nesses elementos que muitas vezes moveram a história, tragicamente ou não, a pátria (França), as armas (exército) e o amor (Josephine).
O filme nos conta que Napoleão nem sempre pôde ter essas conquistas como gostaria. Mas a história já mostrou que, quando esses elementos colidem, nem todo poder basta.
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