Vanessa da Mata transforma dores em música
Publicado em 03/03/2024
Vanessa da Mata acha que estamos buscando um amor que não existe mais. Que o amor idealizado acabou. A constatação vem não só de uma mulher calejada por desilusões como de uma cantora e compositora craque em traduzir romances e DRs em suas letras.
Mais especificamente, vem da dona de um dos grandes hits sobre o assunto, “Boa sorte”, canção mais tocada do cantor americano Ben Harper (seu parceiro na faixa) no mundo. Se o bem-querer anda em crise existencial, segue inspirando essa mato-grossense de 48 anos que lançou recentemente o single “Rindo com você”, sobre saudade e reencontro.
É um excedente da produção do disco “Vem doce”: lançado ano passado e indicado a melhor álbum de música popular brasileira ao Grammy Latino, traz participações de João Gomes, L7nnon e Marcelo Camelo.
Além de alegria, a música dá bons números a Vanessa: 3,9 milhões de ouvintes mensais no Spotify e 385 milhões de visualizações no YoutTube. Mas a cabeça agitada, que provo ca insônias terríveis, esparrama a criatividade ainda pela pintura e literatura. Prestes a embarcar em turnê, Vanessa, que mora em São Paulo, conversou com a reportagem no Rio.
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CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA:
P – “Vem doce” é o segundo disco que você produz. Se tornou mais dona do seu trabalho?
R – Sim. Apesar de que sempre estive presente, ativa. Faço música desde os primeiros discos. Como sou compositora, fico menos na mão do produtor, que, às vezes, quer botar algo que está na moda e não tem a ver com você.
P – Tem composto tanto que “Rindo com você” não coube no álbum…
R – Sou compulsiva, cabeça inquieta. É difícil dormir, meditar. Tenho uma insônia horrorosa. Para a música, sou romântica, positiva. Ela contrapõe o que sou na vida. Séria, velha. Fico iludida na magia que talvez tenha perdido cedo por ter saído de casa sozinha com 14 anos. Isso deu uma endurecida.
P – Você foi casada dez anos e anunciou um segundo casamento que se dissolveu em meses de relação. É preciso ter sofrido muito para adquirir essa propriedade toda ao cantar o amor?
R – Sou aquariana convicta. Mas quando entro no sentimento é caótico, detesto. Hoje, se tem como passar longe da paixão, passo. Acho horrível. Ainda mais com essa facilidade de não se ter comprometimento, armadilhas de viver num país de feminicídio. Tudo é perigoso.
P – Mas ainda acredita no amor?
R – Acredito piamente. Só não te digo como especialista porque, que de tanto sofrer, não sou especialista de nada (risos). Só nas desilusões. Mas isso caleja. Tive uma relação feliz de dez anos (com o fotógrafo Geraldo Pestalozzi), temos três filhos. Mas acho dificílimo relação. Sou nascida da relação péssima dos meus pais. Não romantizo a instituição casamento.
P – A gente idealiza demais?
R – É o problema. Já vivi isso. Buscamos o amor que não existe mais. Romantismo é invenção. Não acredito no “pra sempre”. Colocamos expectativa, inventamos uma pessoa. No começo, a química é forte ou se apaixona pela mente, no meu caso. Com o tempo, desgasta. Estamos menos tolerantes, sem conseguir assumir erros e deixar o ego de lado. Não passamos mais pano.
P – Seria o amor-próprio o mais importante de todos?
R – Total. Não tem como abrir mão. Falei ontem para um filho, que passava mal de amor: “Antes de tudo, precisa pensar em você. Não busca no outro o que está aí dentro. Amor de fora não vai sanar o buraco existencial”.
P – Mas isso a gente só aprende com os anos…
R Com alguém falando, ajuda. Não falaram para a gente. Ainda mais para a mulher. Sou de uma geração cujos pais tiveram relações unilaterais. A mulher fazendo tudo por um casamento. Não conheço um casal da idade dos meus pais em que a parte masculina foi legal. Tenho experiência boa, diferente do padrão da minha casa. Mas está no DNA da brasileira, o trauma. E a necessidade de buscar o próprio prazer.
P – Sempre foi livre sexualmente?
R – Nunca me senti tão bem quanto depois dos 45 anos. Me acho linda, gostosíssima. Não sentia isso antes. Estava tentando alcançar um perfeccionismo intelectual. Sempre fui muito estranha na família. Não alisava o cabelo, sou alta demais (1m80cm). Dependia sempre de um aval. Essa história de se nutrir é perfeita.
P – Tem causado ao postar fotos de biquíni, mostrando a mulher feliz com o corpo que a maturidade te tornou.
R – Estou cada vez mais feliz com meu corpo. Minha bunda está cada vez maior, gosto dela e passei a notá-la (risos). Fiz fotos ótimas e tive a generosidade de compartilhar (risos). É uma Vanessa que não conhecia. É libertador. A coisa de se sentir bem vem com os anos. A idade da loba é maravilhosa, cheia de tesão, autopoder, descobertas.
P – Mas a exposição do corpo marca uma mudança na sua comunicação com o público…
R – Não planejei ou faço para chamar atenção. Até porque, toda vez que posto minha bunda, perco seguidor. Da última vez, perdi cinco mil. Não entendem: “Vanessa da Mata, aqueles vestido longos, essa bunda? Tô no lugar errado”. Claro que dependo disso, é meu trabalho. Mas arredonda um público mais seu. Fica quem te entende, aceita, respeita. Faço porque me sinto feliz comigo. Sair do lugar da busca pela aceitação, de se provar, é muito bom.
P – A conquista dessa intelectualidade te deu certa licença para ser também uma grande gostosa?
R – O que mais me satisfaz é escrever boa letra, ter um conceito dentro da música. Nunca quis ser superpopular. Minha ideia de música era a que trouxesse agrado intelectual, novidadeiro dessa miscigenação musical. Agora… estamos nessa época de novinhos, né? (risos). Muitos meninos estão me procurando. Tem muito agrotóxico na cabeça dos homens mais velhos e os novinhos estão maravilhosos, leves.
P – Você dá ideia?
R – Lógico! Também sou filha de Deus (risos).
P – O que foi fundamental para adquirir liberdade no mundo patriarcal em que mulher é criada para satisfazer?
R – Indagar por quê. Se não perceber ideia legítima de que aquilo é para a sobrevivência hoje… Tipo minha filha: não há como criá-la igual aos meninos. É ela quem vai engravidar, quem estará sozinha, que pode ser estuprada. Não tem ditado imbecil que passe por mim. “Marido e mulher, não se mete a colher”… Tipo de coisa que um cara que batia inventou. Não faz sentido, a não ser para ele.
P – Você cresceu quebrando o machismo na cidade de Alto Garças. Andava de moto, era chamada de “Maria João” por “não brincar de fogãozinho”. ..
R – Era filha única, criança solitária, vivia com a minha avó. Depois, fiquei muito doente. Perdi um rim quando não existia transplante. Vivia numa constante ameaça de morte. Por anos, não conseguia entrar num hospital sem ter pânico. As doenças me sensibilizaram e me ensinaram a ser mais forte.
P – Credita as doenças às tristezas de uma família complicada?
R Sim, várias histórias numa casa conturbada. Minha adolescência foi num leito, com dor renal terrível. Já cantei com pedra saindo do rim. Só sei que meu ouvido inflama quando tampa. Adquiri resistência à dor. Estava perdendo outro rim quando fiz cirurgia, o que me fez ler a obra de Machado de Assis com 12 anos, autores latinos, astrologia, tarô…
P – Bem mais tarde, o candomblé entraria na sua vida…
R – Muito mais tarde. Fui criada na igreja católica, era rezadeira, puxadora de novena. Quis ser freira, mas o padre era horrível. Escapei dele muitas vezes. Quando fiz 40 anos, a espiritualidade veio forte. Minha avó era benzedeira. Minha mãe, médium. Não desenvolveu porque, na igreja, isso é diabólico. Fui fechar a espiritualidade no candomblé.
P – Voltando à música. Como vê o lugar da mulher na composição, universo que sempre foi tão masculino…
R – A maneira de a mulher fazer música é diferente. De ver a vida. Mulher gera, isso é acolhedor de mundo inteiro. Nunca tivemos tanta liberdade, apesar das repressões. Compor é mais transgressor que falar. É mais profundo, é ser protagonista de milhares de pessoas cantando. E nenhum homem fez isso para você. É poderoso, autoconhecimento, gozo, conquista gigantesca. Sempre tivemos transgressoras como Chiquinha Gonzaga, Rita Lee, Dolores Duran. Mulheres tiveram que passar por dores horríveis para ter esse lugar de libertação na composição. Mulher que não precisa de se arranhar, cair num lugar de dor para compor já é um terceiro momento. Mas ainda engatinhamos, só 5% dos direitos autorais são de mulheres.
P – Você sofreu tentativas de estupro…
R – Dez assaltos e duas tentativas de estupro. Na verdade, sofri tentativas a vida toda. Aquele padre que falei, o vizinho… Mas minha avó sempre chegava na hora. Fui esperta. Fingi que estava passando mal, problema no coração. Me salvei. Nunca deixei minha filha dormir na casa de amigo. Nessa hora que acontece. No Natal, aquele tiozinho fofo que ama as crianças. Quando vê, já foi…
P – Não há como não falar da sua marca registrada, o cabelão. Sempre curtiu? A questão da negritude, como é para você?
R – Minha mãe alisou e isso me trouxe questionamentos: “Por que devo parecer com outra pessoa? Não posso gostar de mim como sou?” Sou referência para muita gente, crianças. Eu não era aceita. Todos que eram considerados sérios tinham cabelo alisado. Minha mãe é negra, meu pai é claro, com cabelo encaracolado. Tinha uma coisa assim: “Você é o quê? Parda?”. Parda é papel! A busca da autoestima com seus traços é fundamental. Se temos, não entramos em relacionamento errado, não aceitamos qualquer coisa. Tentar ser outra pessoa para ser aceita é humilhação. Meu cabelo é minha cara, meu corpo, alma, minha composição.
P – Sofreu violência por ele?
R – Já fui xingada na rua várias vez por causa do meu cabelo: “Vai pentear o cabelo, neguinha”. Da minha geração, fui a primeira a ter. Era a negritude exercida de maneira honrosa e petulante. Gostava de ser eu. Isso para alguns é afronta. A liberdade ofende os mal resolvidos.
P – Você é mãe de três filhos adotivos (Bianca, 19, Micael, 20, e Felipe, 22) e crítica das burocracias da adoção. O que tem que mudar de cara?
R – Abrigos que têm 50 crianças e duas pessoas cuidando. O que imagina que acontece? Tudo! Abusos de crianças menores por maiores, físicos, sexuais, mentais. As crianças ficam o dia inteiro na TV e acontece todo o tipo de confusão e abandono. É preciso ter educador, psicólogo. Dizem que a burocracia é para proteger a criança. É nada! É falta de gente, iniciativa, cuidado.
P – Sua avó teve sete filhos biológicos e 20 adotivos. Adoção está no seu DNA. Ela mudou sua visão de mundo?
R – Foi transformador. Apesar de não considerar a maternidade tradicional, sempre fui maternal, mãe de amigas, filhas de amigas. Minha música também tem esse nutrir. Mas a maternidade fez minha empatia aumentar. E meu desespero para uma transformação mais rápida. A urgência por uma sociedade mais justa, com menos exploração e abuso econômico, em que quem ganha menos consiga ter vida.