Elas repudiam rótulo de criminosas e revelam dores do aborto
Publicado em 05/07/2024
Historicamente, a mulher foi posta em uma posição de subordinada. Demoramos anos para ter e ainda lutamos por direitos básicos, como à saúde, ao voto, à igualdade no mercado de trabalho, e, até hoje, sofremos com a insegurança, seja na rua ou dentro de casa.
Em 2024, a autonomia da mulher como cidadã ainda está longe de se concretizar. Não podemos mandar na única coisa que é nossa desde o nascimento: o nosso próprio corpo. Engravidar e escolher se quer ter um filho ou não, deveria dizer respeito a apenas a nós, mulheres.
A luta por direitos femininos sofre ataques todos os dias e nada está plenamente garantido, podendo alguns desses direitos já consolidados serem retirados com alterações na lei, por exemplo. A prova de mais essa insegurança é o PL do Aborto, que consegue retroceder na legislação brasileira e pode transformar mulheres que sofreram com interrrupção de uma gravidez em criminosas.
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Mas o que pensam as mulheres que passaram por essa situação acerca do debate que mobilizou milhares de pessoas nas ruas e nas redes? Qual a história pessoal de cada uma? Como elas se sentem diante do que tem sido dito no Congresso Nacional, na imprensa, na Internet?
O Dol buscou ouvir essas vozes em entrevistas exclusivas, com mulheres que escolheram fazer um aborto, encarando as consequências morais, psicológicas e até violentas dessa ação. Ambas preferiram falar comigo sob sigilo, não se identificando. Para preservá-las, a reportagem não traz fotografias delas e os trechos dessas conversas expostas aqui tiveram o áudio alterado.
A primeira entrevistada conta que fez o aborto em casa, sozinha, por meio de medicamentos, após não ter o apoio do genitor ao descobrir a gravidez: “Quando ele soube da notícia, preferiu se eximir da responsabilidade. Eu o confrontei, ele disse que não poderia dar mais que um suporte à distância […] Eu sempre fui a favor de ter um filho quando eu quisesse ter um filho”, disse.
Mesmo sabendo que é dona do seu corpo, a dor por fazer essa escolha ainda reverbera como culpa e uma ferida aberta, já que o trauma permanece com o tempo. “Hoje eu vejo que essa culpa é minha. É sempre um questionamento diário: será que fiz certo? Será que fiz errado? Por que as pessoas me julgam tanto por isso? Por que só eu carrego essa culpa, só eu tenho que me cuidar e ele não?”, questiona.
Em junho deste ano, o debate sobre o aborto se fortaleceu na mídia devido à tramitação do Projeto de Lei N.º 1904/2024, que equipara o aborto ao crime de homicídio, se realizado após a 22ª semana de gestação, mesmo nos casos autorizados conforme a legislação atual. Com a aprovação na Câmara dos Deputados para que a proposta fosse avaliada em regime de urgência, mulheres de todo o Brasil foram às ruas protestar e se mostrar contra o PL.
Sobre o projeto de lei, a entrevistada se posiciona: “Sou totalmente contra este PL, que é sempre colocando a mulher como quem faz tudo errado. Porque o homem é o provedor e a mulher… o que a mulher faz? (Para a sociedade) Não faz nada (…) eu sou contra porque a mulher deve ser amparada pelo Estado na vontade dela, principalmente nesse caso onde a mulher é estuprada e ela não pode tirar esse filho. Estuprador não é pai”.
Além disso, para a entrevistada, é preciso parar de falar apenas para os civis e começar e ir com as informações para outras esferas da sociedade como os tribunais, as delegacias e os hospitais que atendem mulheres vítimas de estupro e que passaram por um aborto.
Ouça trechos da entrevista:
“Não me arrependo”
Conforme a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021, cinco milhões de mulheres já fizeram aborto no Brasil. Ou seja, não é algo que ainda deveria ser tratado como tabu e, menos ainda, como um crime.
Em depoimento ao DOL, outra entrevistada nos conta que não se arrepende de ter feito um aborto por opção, mesmo com algumas questões ainda permanentes, como a culpa: “Eu não me arrependo, claro que tem as questões até religiosas, questões cristãs que depois ficam te remoendo, mas assim isso nem interferiu”.
“No momento, foi decisão mesmo. Foi uma escolha não interromper esse meu projeto de vida que eu tinha. Eu queria ter outra formação, eu queria fazer outras coisas que uma gravidez naquele momento, com certeza, iria me desnortear”, explicou.
Além disso, o fato de o aborto ainda ser tratado como crime no Brasil a incomoda já que deveria ser apenas da mulher a escolha em mandar no próprio corpo. Para ela, a questão deveria ser civil e descriminalizada.
“Essa questão do crime deveria ser mais amena, o aborto deveria ser descriminalizado. […] uma menina que tem 12 anos, que começou a menstruar agora, engravidar e não ter o direito de fazer essa escolha pelo corpo dela, ela não deve ser criminalizada por isso. Eu acho que essa lei deve ser realmente combatida”, comenta.
A entrevistada diz que apoia o movimento que pede para que o PL seja revisto: “Que bom [que o assunto] ganhou as ruas. Acredito que essa luta deve continuar, eu defendo a causa, só não fui ainda para as passeatas por motivos de trabalho e outras demandas, mas assim que possível irei me meter nessa”, contou.
Para ela, a religião contamina o debate e carrega ainda mais no sentimento que permeia grande parte das mulheres que decidiram ou precisaram interromper a gravidez: a culpa. “A questão da religião é outra coisa. Parece que tu acabas voltando àquela coisa de idade média. Aquela visão assim bem de pecado. Eu acredito que não devemos fazer essa relação. A questão religiosa deve ficar fora desse debate”, disse.
Defender a vida das mulheres e garantir proteção a elas deveria ser a maior preocupação no momento ao invés de culpar e julgar o livre-arbítrio de todo ser-humano.
Ouça trechos da entrevista:
Equipe Dol Especiais:
Repórter: Laura VasconcelosMultimídia: Thiago SarameIlustrações: Emerson CoeCoordenação e edição: Anderson Araújo