Juiz do Pará descobre autismo aos 45 anos; veja entrevista
Publicado em 04/08/2024
Pedro Enrico de Oliveira tem 45 anos, é casado, pais de 2 filhas e professa a religião protestante. É juiz de Direito desde 2013, ocupando a 2ª entrância do Tribunal de Justiça do Estado, na titularidade da vara criminal de Tucuruí desde 2021, onde é diretor do fórum.
Possuindo um vasto currículo para a sua idade, o magistrado seria mais um entre centenas que atuam no Estado, a não ser por um detalhe: possui Transtorno do Espectro Autista (TEA), diagnosticado apenas este ano. Consciente da sua deficiência, se tornou um ativista da causa.
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Bastante consciente do desafio que enfrenta, o juiz garante saber o alcance que sua história pode ter, justamente por ser uma pessoa pública e num cargo de autoridade sobre as demais pessoas. “Posso usar essa circunstância para influenciar positivamente a sociedade, instituições, pais e responsáveis na busca por um diagnóstico precoce”.
Pedro é professor de Introdução ao Estudo do Direito e Direito Penal 1 desde 2015. Possui MBA em Ciência e Análise de Dados (USP), é mestre em Direito e Poder Judiciário, especialista em Filosofia, Teoria do Direito e Direitos Humanos (PUC-MG) e em Direito Processual Civil (UGF). Acompanhe a seguir a entrevista exclusiva do magistrado ao DIÁRIO:
P: Desde quando apareceram as características do TEA na sua vida? Você decidiu sozinho ou teve apoio de outra pessoa no momento de buscar ajuda médica?
R: Possuo todas as características do autismo desde os três anos de idade. Tenho lembranças claras das estereotipias (ações repetitivas ou ritualísticas vindas do movimento, da postura ou da fala), dos hiperfocos (interesses em assuntos restritos) em mapas e aviões, das dificuldades de manter uma comunicação eficiente com as pessoas, inclusive dentro de minha própria casa. Ou seja, os três grandes grupos de características sempre estiveram muito presentes na minha vida, gerando prejuízos muito grandes. Além do mais, com muita frequência eu tenho as crises próprias do autismo (meltdown e shutdown). Por causa do conjunto de comportamentos externos que apresento, sempre precisei de suporte médico. Ao longo dos anos, obtive diagnósticos de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), depressão, e até bipolaridade. Por causa de um problema de ordem profissional, minhas estereotipias ficaram muito fortes e fui introvertendo, me fechando, perdendo o contato com minha família e com o mundo exterior. Então, decidi buscar ajuda médica com todo o suporte de minha família. Minha esposa é da área de saúde e conhece o autismo.
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P: Com quantos anos você teve o diagnóstico?
R: Meu diagnóstico é recente e ocorreu em janeiro deste ano, aos 45 anos de idade, já num momento de completo esgotamento para a vida típica. Eu vivi mais de 40 anos de uma vida típica, vivendo a vida laboral intensamente, mas possuindo o desenvolvimento neurológico atípico. Quando busquei suporte médico especializado em autismo, tive a hipótese diagnóstica de duas médicas psiquiatras. Uma delas é uma das maiores especialistas no Brasil em autismo em adultos e pesquisadora do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Eu precisava ter absoluta certeza de que, dessa vez, teria o diagnóstico correto. Passei por quase 3 meses de avaliação neuropsicológica, que também, confirmou o diagnóstico médico. Assim, fui diagnosticado com TEA e TDAH grave, com dupla excepcionalidade, por causa de altas habilidades para a execução de algumas funções cognitivas.
P: A partir do diagnóstico, como tem sido a sua vida pessoal e no trabalho convivendo com a TEA?
R: Minha esposa, mesmo possuindo conhecimento sobre autismo, ainda tem dificuldades para compreender meu funcionamento atípico, como, minha privação de sono, falta de atenção, desinteresse em assuntos fora dos meus hiperfocos. Minhas filhas são crianças e anda não entendem a gravidade da deficiência. Fiquei de licença médica por cerca de 6 meses. Minha médica detectou um quadro chamado de “burnout no autismo”, quando o autista se torna disfuncional por causa do esgotamento físico e mental da longa exposição a uma vida típica. É a perda da habilidade para lidar com a vida típica. Estou tentando retomar o trabalho. A presidência do TJ-PA tem me dado todo o suporte para isso. Porém, é uma evolução muito difícil e lenta. Meus hiperfocos estão muito ativos e eu já percebi que não depende de um esforço pessoal, porque é uma condição biológica.
P: Como foi a sua trajetória até assumir o cargo de juiz de Direito? Teve problemas no aprendizado e nos estudos quando mais novo?
R: Não tenho limitação cognitiva para o aprendizado intelectual/científico. Minhas dificuldades cognitivas são em relação às experiências comuns da vida. Existem coisas muito simples para uma pessoa neurotípica que eu não aprendo. Por exemplo: não aprendo que a comida na mesa pode estar quente e eu queimo a boca quase diariamente. Não sei comprar presunto no supermercado. Compro frutas e verduras estragadas. Não entendo filmes, mas tenho altas habilidades para o raciocínio lógico e outras atividades cognitivas, o que me ajudou na escola, faculdade, pós-graduações e no preparo para o concurso para Juiz de Direito. Porém, tenho interesses muito específicos e limitados. Sempre foi muito difícil estar em sala de aula, ter atenção no que as pessoas falam, inclusive no dia a dia.
P: Quando decidiu ser juiz?
R: Decidi ser juiz antes de me formar em Direito. Porém, levei 10 anos até ter foco e atenção para estudar para o concurso. Estudei pouco tempo… Numa janela de 10 meses, estudei por apenas 6 meses. Tive muita dificuldade para manter o foco em matérias que não tenho interesse, e para estudar tópicos que não fossem conceituais e filosóficos. Como gosto de raciocínio lógico, os conceitos e princípios sempre foram fáceis para mim, mas os pontos que demandavam outras habilidades, fugiam do meu interesse e eu simplesmente não estudava. Além disso, tenho algumas estereotipias que eu não controlo. Eu tomava 8 a 10 banhos muito longos enquanto estava no horário de estudo. Isso tomava muito tempo e eu tinha pouco rendimento.
P: Quais os principais problemas que uma pessoa pode ter em caso de recusa na procura de atendimento médico quando do surgimento de sintomas de autismo? A vergonha e o medo prejudicam o diagnóstico e o tratamento?
R: O autismo é uma deficiência. O autismo de nível 1 de suporte, que é o meu caso, é tão grave quanto o autismo de nível 3 de suporte. Não se classifica o autismo por gravidade, pois, de todas as formas, é uma deficiência grave e que gera prejuízos imensuráveis. No meu caso, fiquei 45 anos sem diagnóstico. Colapsei e me tornei disfuncional. Como disse, vivi a vida de pessoas de neurodesenvolvimento típico, embora eu fosse atípico. Esse “estilo de vida” vai gerando comorbidades, como depressão, síndromes de pânico e ansiedade, dentre outras, até desaguar na completa disfuncionalidade. O autismo é estigmatizante. Os pais têm vergonha e medo de buscar diagnóstico para o filho “esquisito”. Existem preconceitos contra a pessoa com TEA. Alguns chamam de “frescura”. É possível que, até mesmo dentro da minha instituição, existam colegas que considerem que a minha licença médica se deu por preguiça. O diagnóstico é o único caminho para a terapia adequada e para a compreensão da própria família sobre a condição da pessoa com TEA e a família é o maior suporte que a pessoa com TEA pode ter. Tive todo o apoio dentro de casa, mas, existem famílias que não aceitam a possibilidade de ter um filho ou filha com TEA, justamente porque o autismo é estigmatizante. Ao longo de minha vida sofri rejeições sociais. Fui chamado de esquisito, esquizofrênico e louco por causa do meu jeito.
P: Recentemente um pastor evangélico do município de Tucuruí disse que “o autismo é visita do diabo no ventre das desprotegidas”. Como você encarou essa declaração?
R: A fala do pastor somente reforça e alimenta a má percepção que o cidadão médio possui sobre a pessoa com TEA. As palavras foram proferidas durante uma pregação religiosa, diante de uma multidão de milhares de pessoas. As palavras geraram desinformação e aumentaram o preconceito. Um pregador religioso deve estudar sobre o assunto que pretende falar. Não pode apresentar como uma desculpa legítima o “calor da pregação”, pois a opinião pública já foi formada a partir do erro pronunciado. Atribuir ao maligno espiritual o fato de uma criança nascer com TEA é leviano e desrespeitoso. Essa fala desastrosa apenas comprova que a proteção das pessoas com deficiência é absolutamente necessária para a nossa dignidade como indivíduos e cidadãos, assim como para o desenvolvimento de nossas potencialidades.
P: De que forma você, como um juiz de Direito, pode ajudar na luta de milhões de pessoas no Brasil e no mundo que possuem diagnóstico de TEA? Como conviver com o transtorno e levar uma vida normal?
R: Existe uma ideia disseminada na sociedade de que pessoas com TEA podem ter uma vida normal. Isso é errado. Nós não podemos ter uma vida normal, pois somos deficientes. Podemos estudar, trabalhar, constituir família, ter filhos. Porém, sempre teremos limitações na vida típica. Podemos ter uma vida menos anormal, mas, jamais, normal. Podemos ser modulados por terapias para uma vida mais próxima da expectativa social, mas, continuamos deficientes e o autismo sempre se manifestará no dia a dia. A estereotipia sempre será parte do nosso equilíbrio físico e emocional, o hiperfoco sempre demandará grande parte de nossa energia. O diagnóstico será sempre o caminho para melhorar a qualidade de vida da pessoa com TEA e ajudar na inserção social.