Conheça a AADC, doença genética ultrarrara

Publicado em 08/08/2024

Ao acompanhar uma criança desde o nascimento, há marcos de desenvolvimento que são esperados para cada fase, para que ela desenvolva determinadas capacidades socioemocionais, de linguagem, cognitivas e motoras. No caso do desenvolvimento motor, por exemplo, é esperado que bebês, antes dos 4 meses de vida, consigam manter a cabeça erguida, sustentar o peso do corpo nos antebraços e levantar a cabeça e os ombros.

Mas, há aqueles que têm dificuldade de realizar esses movimentos por apresentarem um tônus muscular diminuído (hipotonia), identificado por falta de controle da cabeça, falta de resistência muscular quando você o levanta, braços e pernas sempre em linha reta, sem flexão, e por problemas de sucção e deglutição. São os chamados “floppy babies”, ou bebês molinhos, uma situação que pode indicar uma causa mais complexa, como alteração cerebral, na medula, nos nervos ou músculos.

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Essa diminuição do tônus muscular sem melhora, junto a um atraso global no desenvolvimento, presença de movimentos anormais de braços e pernas (distonias), e especialmente movimentos involuntários dos olhos (crises oculógiras), juntos, podem indicar uma condição rara, a deficiência da enzima descarboxilase de L-aminoácidos aromáticos. Ou, para simplificar, a deficiência de AADC, uma condição genética rara. No Brasil, são apenas cerca de 20 pacientes identificados.

O neurologista infantil Hélio Van Der Linden – médico do Instituto de Neurologia de Goiânia e do Centro de Reabilitação e Readaptação Henrique Santillo, na mesma cidade – atualmente trata três desses pacientes. “É uma condição ultrarrara, mas possivelmente é subdiagnosticada, porque é uma doença que a gente chama ‘camaleão’, que mimetiza outras condições, especialmente a paralisia cerebral, epilepsias graves e doenças neuromusculares”, diz o neurologista.

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Foi o que aconteceu com Samuel, filho da criadora de conteúdo digital Carol Rezende, que há alguns anos divide com seus mais de 50 mil seguidores no Instagram (@carolrezende) a rotina de cuidados com o menino, hoje com 9 anos. Até os sete anos, ele tinha diagnóstico de paralisia cerebral. “A neuropediatra que segue a gente no Instagram percebeu que o Samuel estava atípico para ser uma criança com paralisia cerebral. O diagnóstico inicial havia sido baseado na prematuridade do Samuel e na possibilidade de falta de oxigênio intraútero. No entanto, como ele não tinha lesões na ressonância cerebral, ela falou que a gente deveria fazer um exame genético, um Exoma. Depois de um tempo, a gente não fez o Exoma, mas apareceu uma mãe no meu Instagram que tem um filho com AADC e falou: ‘o Samuel é muito parecido com o meu filho’. Aí ela mandou esse kit pra gente. Ela fez o cadastro no laboratório, a gente colheu e daí deu resultado: AADC. Depois a gente fez os outros exames e confirmou”, conta.

CAUSAS

Mas o que causa a deficiência de AADC? Van Der Linden explica: “É uma doença genética autossômica recessiva, causada pela alteração de um gene chamado DDC. Para que ela ocorra, é preciso que o par do gene, que a gente chama de alelo, o que vem do pai e o que vem da mãe, os dois tenham a mutação. O casal é só portador, porque para ter a doença é preciso ter os dois alelos mutados. Mas aí, a cada gravidez que o casal vai ter, o risco é de 25% de ter uma criança com AADC”.

Ainda não existe cura para a síndrome da AADC. O tratamento envolve tentar suprir ao organismo, com medicamentos, as funções impactadas pela condição. “Existe um racional para tratar esses pacientes, baseado na falta do que cada neurotransmissor faz. Existem medicações que tentam substituir pelo menos em parte a ação daquele neurotransmissor. É o que a gente chama de tratamento sintomático, para minimizar os efeitos. O segundo ponto é reabilitação, porque esses pacientes geralmente são graves. Então precisam de fisioterapia; fonoterapia, porque muitos têm problemas de deglutição e podem ter pneumonias por aspiração; terapia ocupacional; psicologia, tanto para o indivíduo quanto para a família, porque é uma síndrome grave, com impacto muito grande na qualidade de vida da família, e o papel do cuidador muitas vezes é negligenciado”.

A grande expectativa da comunidade médica internacional envolvida com a pesquisa e tratamento de pessoas com a AADC, diz Van Der Linden, gira em torno da Terapia Gênica, ainda não aplicada no Brasil, mas já em uso na Europa. “É uma terapia que já foi aprovada no órgão regulatório europeu, a EMA [Agência Europeia de Medicamentos, que seria o similar da Anvisa na União Europeia], e a gente tem uma grande expectativa que a Anvisa aprove essa terapia até o final deste ano no Brasil – os documentos já foram submetidos pela empresa responsável e estão em análise”, diz o neurologista, declarando que já há provas robustas da eficácia do procedimento, com melhoras significativas para os pacientes, especialmente em países asiáticos, continente onde há maior prevalência de casos no mundo.

Carol Rezende entrou com ação na Justiça para que o Samuel possa realizar a Terapia Gênica, mesmo antes da aprovação pela Anvisa, pela situação emergencial. A primeira perícia foi desfavorável ao pedido, alegando que a terapia ainda não teria estudos longitudinais, mostrando o desenvolvimento das crianças ao longo do tempo, nem avaliação total dos efeitos colaterais, “o que é verdade, porque a terapia é muito recente”, diz ela, em um vídeo publicado no fim de maio no Instagram. Mas outras duas perícias foram favoráveis, “o que é bom, porque cria jurisprudência”, diz ela.

PARA ENTENDER AS LIMITAÇÕES

A doença genética afeta a produção de neurotransmissores essenciais para a comunicação das células do sistema nervoso, como a dopamina. “Em geral a apresentação é de casos graves. Existem raramente casos leves, de pessoas que conseguem andar, que apresentam sintomas sutis, como uma deficiência intelectual leve, um distúrbio de movimento sutil, mas que conseguem conviver naturalmente com alguma limitação, mas a maioria é grave”, diz Van Der Linden, que tem especialização em epilepsia e é doutorando em doenças raras.

Bettina Ferro é referência em doenças raras no Pará

Desde 2023, o Hospital Universitário Bettina Ferro foi oficializado pelo Ministério da Saúde como centro de referência para diagnóstico e tratamento de doenças raras e genéticas, o único no Pará, regulamentando um atendimento que a unidade já fazia há anos, com equipe multidisciplinar, mas agora com garantia de recursos do MS para isso. Lembrando que, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma doença é rara quando atinge menos de 65 pessoas em cada grupo de cem mil indivíduos.

Mas não se trata de um hospital de “porta aberta”. É preciso já ter passado por outras unidades de saúde e ter o encaminhamento para lá, a partir de diagnóstico ou suspeita de diagnóstico. “Nós recebemos pacientes da rede de saúde, pela regulação do SUS, via unidades básicas de saúde. Dentro do atendimento dessas doenças raras, nós temos ambulatórios em grupos específicos de doenças. Há ambulatório de doenças neuromusculares relacionadas a condições genéticas, ambulatório de epilepsia relacionado à condição genética, e existe o ambulatório de distúrbios de movimento relacionados à condição genética”, explica a neuropediatra Ara Rúbia Gonçalves, que integra a equipe do HUBF. É neste último ambulatório em que são atendidas condições equivalentes à AADC.

“Não temos nenhum paciente com diagnóstico de AADC aqui, mas temos condições equivalentes, crianças com quadros genéticos que também simulam a paralisia cerebral. Hoje temos cerca de 50 pacientes com esses quadros”, explica Ara Rúbia.

Em casos onde os sintomas são muito heterogêneos e a história do paciente ou outras avaliações não são suficientes para firmar o diagnóstico, a neuropediatra alerta que a avaliação genética é fundamental para direcionar a melhor condução médica. “É importante pensar nisso, porque existem condições que são passíveis de tratamento. Ou tratamento sintomático, direcionado, ou o tratamento modificador de doença, que atrasa acontecimentos mais graves dessas doenças que podem ser altamente degenerativas”, alerta a médica. “Muitas doenças já têm tratamento, mas mesmo para as que não têm, a importância de identificar as causas específicas é justamente para fazer o aconselhamento genético, orientar a família, o que é muito importante”.

Para realizar os diagnósticos, o hospital também mantém parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde está o laboratório que é referência nacional em erros inatos do metabolismo, através do Laboratório de Erros Inatos do Metabolismo da UFPA, que faz essa ponte.




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