Finados: ávores eternizam memória e legado de quem já partiu

Publicado em 02/11/2024

Logo que chega para visitar a família em Monte Alegre, oeste do Pará, Jussara Kishi atravessa um corredor de ipês. Mas ao contrário do que ocorre com a maioria das pessoas, para ela não é só o tamanho e o colorido dos ipês que chama a atenção ainda na entrada da cidade. “É bonito ver que em agosto e setembro a cidade está florindo. E me emociona saber que tem o toque do meu pai nisso tudo”, diz. O pai de Jussara, Seu Kishi, morreu há 20 anos, mas sua memória segue viva naquele bosque.

A história começa na década de 70, quando o jovem agrônomo Yasuo Kishi resolveu deixar o Japão, seguir o sonho antigo de morar no Brasil e fincar raízes na Amazônia. Ao chegar em Monte Alegre, Kishi conseguiu se estabelecer e formar uma família ao lado de Elcenir Sena e teve três filhos. Ele só não contava que por aqui iria descobrir também uma nova paixão: os ipês.

“Minha mãe diz que da mesma forma que no Brasil nós achamos o ipê parecido com a flor de cerejeira, que é típica do Japão, meu pai também fez essa conexão assim que chegou. Mas ele achava o ipê ainda mais bonito”, explica Jussara.



O pai dizia que a semente do ipê era cara, então reunia os filhos e amigos para procurar elas nas matas de Monte Alegre, chegando até mesmo a pegar de uma árvore que tinha na Praça Waldemar Henrique, em Belém, e levar para plantar na cidade.

Mas além de arborizar o sítio da família, a ideia era enfeitar a cidade com ipês. Sempre muito engajado em melhorias na região, Seu Kishi teve a iniciativa de fazer um projeto para arborizar a entrada de Monte Alegre, contando com apoio de amigos e organizações da cidade.

Kishi tinha um favorito: os ipês roxos. Então em um lado foram plantados ipês roxos e do outro ipês amarelos. Mas ele não parava. “Paralelo a isso ele foi plantando em outros lugares também”, diz Jussara.

Seu Kishi faleceu em 2004, aos 62 anos, antes de ver as árvores adultas e frondosas. A herança ficou para os filhos e os netos. “É tão bonito ver o quanto ele valorizava a Amazônia, a beleza natural daqui, mesmo vindo de tão distante. Acho que existe beleza e poesia na pessoa que faz algo e que não vai ver. Me emociona ver que ele se preocupava em ajudar a comunidade, em deixar a cidade mais bonita”, diz.



Agrônomo formado em uma das mais tradicionais universidades de Tokyo, Seu Kishi gostava de ser chamado mesmo era de agricultor. Dos três filhos, dois herdaram do pai o gosto de trabalhar com a natureza e se formaram em agronomia e engenharia florestal. Jussara, que atualmente mora fora do Brasil, se formou em jornalismo e espera cultivar a memória do pai de outra forma: escrevendo um livro. “Não pretendo publicar ou vender, mas é um projeto pessoal, para ter essa memória registrada, da vida dele no Brasil e no Japão”.

Mesmo com saudade, ela diz que gosta de pensar no pai quando observa as árvores. “Eu sinto muito mais a presença do meu pai nos ipês que ele plantou e na casa onde a gente cresceu, do que quando visito o túmulo dele”.

O IPÊ-PAPAI

Jussara não é a única filha que lembra do pai quando olha para um ipê. É em meio a outras árvores que um ipê ainda jovem se destaca no jardim do prédio das pós-graduações do Instituto de Tecnologia (Ppgitec) na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém. “Ele é alto e magro”, igual o papai. “E tem quatro ramos, assim como meu pai, que teve quatro filhos”, diz a servidora pública Luma Pontes.

As comparações são em referência ao professor Marco Pontes, pai de Luma e que foi docente da UFPA desde a década de 90. O professor faleceu em março de 2021. “Ele adoeceu de forma muito repentina e faleceu de forma muito rápida. Nós decidimos cremá-lo, somos uma família espírita, então não temos o hábito de visitar túmulos”.



Inicialmente a família pensou em jogar as cinzas no rio Guamá, na frente da universidade onde ele atuou por quase 30 anos e que também considerava como casa. Foi quando veio a ideia de plantar uma árvore.

Após entrar em contato com o Bosque da UFPA, a família ganhou uma muda de ipê. Parte das cinzas foram jogadas no rio e a outra parte foi plantada junto à muda da árvore.

Desde então Marco Pontes se transformou no Ipê-Papai, como carinhosamente é chamado por Luma. “Ele amava a universidade, então só jogar as cinzas no rio nos pareceu muito efêmero. Foi quando decidimos plantar uma árvore, para que no terreno em que ele já cultivou tanto, ele também florescesse”, diz Luma.



Ainda não se sabe qual a cor das flores, mas a expectativa é grande. Luma tem uma aposta. “Meu pai era muito da paz, eu gostaria que fosse branco, estamos esperando ansiosamente para que floresça”, diz.

O Ipê-Papai ganhou uma placa de identificação dois anos após o plantio, para que alunos e amigos pudessem visitá-lo e tivessem a árvore como um memorial. Também já ganhou um laço no dia do aniversário de Mauro Pontes e recebe visitas constantes de Luma, que atualmente faz doutorado na instituição. É nessas visitas que o Ipê-Papai muitas vezes consegue trazer o conforto do abraço que ela sente tanta falta.



Para Luma, celebrar a memória do pai a partir da natureza, no lugar que ele amava, foi a melhor decisão. “Hoje em dia eu visito as cinzas do meu pai no lugar em que ele foi feliz, onde eu sou feliz, onde todos os filhos dele estudaram. É como se fosse uma continuidade, é a vida brotando novamente”, finaliza.

ÁRVORES PARA PESSOAS



O Ipê-Papai não é a única árvore que homenageia a memória de servidores e alunos que já partiram. Gina Calzavara, administradora do Bosque da UFPA, diz que já perdeu as contas de quantas árvores plantadas para homenagear pessoas existem na instituição. “Sempre gostei de plantar por pessoas, vivas ou mortas. Plantar é algo necessário”. E a escolha das árvores nem sempre é por acaso. Ela lembra que recentemente um pesquisador faleceu e a família plantou goiabeiras. “Ele amava goiabas. A família optou por plantá-las e isso acabou fazendo com que os irmãos se unissem mais a partir daquele momento, para cuidar daquela árvore e preservar aquela memória”, diz.



O campus da UFPA, em Belém, também possui outro bosque, onde existem 150 árvores e 98 Bougainvilles, número que homenageia as vítimas do Covid-19 na instituição. O cultivo iniciou em 2021, próximo ao hospital universitário. Segundo Gina, as flores chamam a atenção de quem passa pelo local e descobre o porquê de estarem plantadas.

“Essa conexão com as flores faz com que as pessoas saibam que a homenagem é pelas famílias enlutadas e querem homenagear seus entes queridos também. Se surpreendem, dizem que nunca plantaram por alguém”, diz. Um novo plantio já está sendo organizado, para homenagear mais pessoas.



A homenagem aos que partiram no período da pandemia também motivou a criação de um bosque na Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) em 2021. Organizado pela professora Gracialda Ferreira, alunos de engenharia florestal e o apoio da prefeitura do campus, o local recebeu o nome de “Bosque da Paz: professora Selma Ohashi”, em memória à docente que faleceu em 2020, após 35 anos dedicados à instituição. O bosque reuniu 75 mudas, de 25 espécies diferentes, como mogno, ipês, cuieiras, açaí e cacau. Gracialda diz que a homenagem conforta as pessoas e contribui para o planeta. “As plantas são seres vivos que se mantêm no planeta por muito tempo, representam perenidade, força, resistência e cuidado. Plantar para homenagear alguém é transformar esse luto em uma lembrança viva”, finaliza.


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