Projeto garante permanência de estudantes indígenas na UFPA
Publicado em 03/09/2023
A história dos povos indígenas no Brasil é marcada por injustiças históricas e discriminação. A inclusão desses grupos em cursos universitários, possibilitando o acesso ao ensino superior, é uma maneira de corrigir essas desigualdades e promover a justiça social, oferecendo oportunidades educacionais que historicamente foram negadas a eles.
A Universidade Federal do Pará (UFPA) vem buscando tornar seu ambiente acadêmico cada vez mais justo e inclusivo, com ações afirmativas realizadas desde o processo de ingresso até a permanência na universidade, com respeito à diversidade étnica e cultural.
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A Faculdade de Odontologia, do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), é um exemplo: desenvolve o projeto “Inclusão de indígenas no ensino superior: a experiência da odontologia na Amazônia”, voltada para ações de permanência de estudantes indígenas, que recebeu o Prêmio Léo Kriger, do Seminário Ensinando e Aprendendo, da Associação Brasileira de Ensino Odontológico.
Criado em 2021, o projeto iniciou a partir do alto índice de evasão, trancamento e perda de alunos indígenas, apesar do curso de odontologia apresentar, dentre todos os cursos da UFPA, a maior quantidade de discentes indígenas matriculados (53) e com uma grande diversidade de etnias (16). Atualmente, 40% do total de alunos da faculdade é de comunidades tradicionais. A partir da obtenção desses dados, a iniciativa buscou analisar quais os motivos contribuíam para este alto índice de desistência, a fim de elaborar medidas capazes de modificar essa realidade.
Itapytire Farias dos Reis Tembé, 29 anos, da etnia Tembé, é natural do município de Santa Luzia do Pará. Passou no Processo Seletivo Especial (PSE) para indígenas e quilombolas e entrou no curso de odontologia em 2016. “O início do curso foi muito ruim, pois não tinha conhecimento de nada. Foi como se me jogassem num lugar que eu nunca tinha estado. Nunca tinha saído da aldeia para a cidade grande e penei muito porque estranhei os costumes, as tradições, a religião… Ainda mais porque tinha deixado meus filhos na aldeia. Pensei várias vezes em abandonar o curso”, relembra.
No curso, além da dificuldade de linguagem e de aprendizagem, somaram-se os problemas financeiros e de inclusão social. “O preconceito e o racismo contra indígenas e quilombolas ainda é muito grande em toda a sociedade. Chorei muitas vezes sozinha porque não tinha para quem pedir ajuda. Foram muitas noites sem dormir e muitas frustrações. Além de tudo isso no quinto semestre tive uma professora que tinha uma rixa comigo e me reprovou 3 vezes… Quase entrei em depressão. Não conseguia comer e nem estudar”, relata a aluna, que está no 9º semestre.
O tempo foi passando e Yta diz que Tupã (Deus na religião indígena) colocou no caminho dos alunos Liliane do Nascimento, que passou a ocupar a direção da faculdade, em 2021. “A partir daí tudo mudou. Ela passou a olhar para a gente de uma forma diferente. Passou a reunir com a gente para ouvir nossas dificuldades. Somos ouvidos um a um! Passamos a ser incluídos e olhados como alunos de fato e de direito. E uma das coisas mais importantes que ela fez foi criar um banco de instrumentos para nos auxiliar nas aulas porque a maioria de nós não tem recursos para comprar o que os professores pedem…”.
Casada, Yta tem hoje 3 filhos de 14, e 3 anos (que moram com sua mãe na aldeia) e um de 7 meses que mora com ela em Belém, junto com o marido, que também é indígena. A família mora na casa do sogro da aluna. “Tudo que aprender aqui pretendo usar na minha aldeia para ajudar o meu povo. Esse é o sentido de estar no curso”, garante.
O curso de odontologia da UFPA recebe alunos indígenas desde 2012, mas apenas quatro tinham se formado. Foi detectado que os alunos entram no curso mas têm muita dificuldade em levar até o fim. O abandono se dá por vários fatores, como questões financeiras, preconceito e a dificuldade de adaptação à cultura e linguagem, por exemplo. “Desde antes da obrigação das cotas, a universidade prioriza a inclusão de indígenas e quilombolas e o projeto vem como uma forma de intervir nessa situação para fixar o aluno e garantir sua permanência até o fim”, detalha a professora Liliane Silva do Nascimento, diretora da Faculdade de Odontologia e coordenadora do projeto.
PREMIAÇÃO É RECONHECIMENTO
Entregue durante o Seminário Ensinando e Aprendendo, que integra a programação da Reunião Anual da Associação Brasileira de Ensino Odontológico, o Prêmio Léo Kriger leva o nome do professor fundador da Odontologia no Brasil como forma de homenagear seu trabalho e sua vida. O objetivo da premiação é destacar e reconhecer, no âmbito do ensino da odontologia do Brasil, a experiência exitosa da educação superior na área.
A pesquisa “Inclusão de indígenas no ensino superior: a experiência da odontologia na Amazônia” que foi a premiada deste ano como melhor trabalho de intervenção no ensino odontológico no Brasil é de autoria dos professores Liliane Silva do Nascimento, Andrea Maia Correa Joaquim, Ana Maria Martins Brandão, Adalberto Lirio de Nazaré Lopes, Tania Moraes Ribeiro, Mara Gorett Avelar da Silva, Maria de Jesus Alves de Lima e Lurdete Maria Rocha Gauch.
“A odontologia é o curso mais antigo da UFPA, com 109 anos, e nunca tinha recebido um prêmio nacional de ensino odontológico. Essa foi a primeira vez e foi com um trabalho fruto de muitas mãos, por que foi além da coordenação, que estava à frente do projeto, os demais professores também pegaram as nossas mãos e, juntos, fizemos este trabalho acontecer e, principalmente, veremos cada vez mais indígenas sendo formados como cirurgiões dentistas dentro da Amazônia”, ressalta Liliane Silva sobre a importância do reconhecimento da premiação recebida.
Curso oferece instrumentos e tutorias individualizadas
Rodrigo Gomes do Nascimento é da etnia Way (Aldeia Mapuera, no Rio Mapuera), natural de Oriximiná, no oeste paraense, e representa os estudantes de odontologia na diretoria da Associação dos Estudantes Indígenas da UFPA. Também entrou em 2016, na segunda chamada do PSE, e se encontra atualmente no 8º semestre. “Assim como muitos estudantes indígenas daqui, para mim também não foi e não é nada fácil fazer e permanecer no curso, principalmente no aspecto financeiro, já que não temos nenhum tipo de apoio”, diz Rodrigo, que é casado e mora em Belém com a esposa e 2 filhos. Para ajudar nas despesas também trabalha como artesão.
Ele diz que os problemas mexem muito com o psicológico e prejudicam os estudos. “Também sofremos muito preconceito e racismo por parte dos outros alunos e a situação só não é pior porque recebemos um apoio importante da universidade e da Faculdade de Odontologia, que conseguiu montar um banco de instrumentos que conseguimos pegar como empréstimo para realizar nossas aulas práticas. Também venho recebendo ajuda de muitas outras pessoas que nos ajudam a levar o curso para frente”.
Assim com Yta, Rodrigo pretende se formar e levar todo o seu conhecimento na área de saúde bucal para sua aldeia, ajudando seus irmãos e irmãs. “Precisamos nos manter firmes e que a gente sirva de exemplo para que outros parentes e amigos tenham coragem e força para seguir pelo mesmo caminho do conhecimento, ajudando a melhorar a vida de nossos povos. Muitas pessoas dependem da gente. Não vou desistir”, garante.
EMPRÉSTIMOS
Entre as iniciativas utilizadas pelo projeto para mudar este cenário, está a criação de um banco de instrumentais em 2022, que empresta os materiais do curso para esses alunos e evita a desistência deles por fatores econômicos. Há também a realização de rodas de conversa. É ofertada uma tutoria individualizada para cada estudante, a partir de suas dificuldades, sem deixar de considerar suas realidades, como a dificuldade com a Língua Portuguesa, por não ser a língua materna da maioria.
Existem hoje na Faculdade de Odontologia estudantes indígenas de 16 etnias e, cada uma delas possuía as suas dificuldades e especificidades. “É de extrema importância que um curso ofertado dentro da Amazônia leve em consideração esses aspectos ao proporcionar uma resposta para seus alunos a partir de sua origem, realidade, hábitos, expectativas e sonhos que cada um tem. E essas conversas atendem a essas questões”, coloca Liliane Nascimento.
A luta constante dentro do curso é acabar com a resistência a alunos indígenas e quilombolas. Muitos têm dificuldades de se relacionar porque não são aceitos pelos alunos que vivem na cidade e o curso tem procurado solucionar isso através do programa Territórios de Inclusão e de acolhimento a esses alunos.
“Nós buscamos ensinar a odontologia para esses alunos e eles nos ensinam suas técnicas de vida e de cura e isso tem um reflexo muito bom na formação geral dos alunos, porque somos transformados. A universidade pública precisa ter o compromisso de incluir esses povos originários no ensino superior. A nossa dívida histórica com ele é enorme”, coloca a diretora.